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Unheimliche político

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Marcia Tiburi

Em um texto de 1919 Freud denominou como “marginal” um campo particular da estética. Ele se referia ao domínio do “Unheimliche”, termo que se traduz em português por estranho e inquietante, mas também por sinistro, lúgubre e ominoso como se encontra no Dicionário comentado do alemão de Freud de Luiz Hanns (Imago, 1996). A tradução de Paulo César de Souza (Companhia das Letras, 2010) opta elegantemente por usar apenas “O inquietante”. Compreendendo acertadamente a estética como “teoria das qualidades do nosso sentir” e não apenas como tradicional teoria do belo ou do sublime, Freud percebe que a estética é o campo dos estudos que se ocupa dos afetos, do corpo, de tudo aquilo que escapa da ideia de razão da filosofia tradicional. Trata-se de um campo amplo. Muito amplo.

“Unheimliche” refere-se à experiência em que estão em jogo sensações de angústia e terror, mas não apenas. Freud usou sobretudo a famosa história “O homem de areia” de Hoffmann para falar do “efeito” inquietante que provocam as figuras inanimadas, tais como a boneca Olímpia pela qual se apaixona o personagem Nathaniel. Quem conhece um museu de cera entenderá o exemplo. Mas podemos atualizá-lo: também o devoto admirador que se assusta com a celebridade encontrada na rua vestida como qualquer um pode ser vítima do efeito de estranheza inquietante. A inquietação é um efeito que tem relação com o desacordo entre a vida subjetiva e a realidade.

O efeito de estranheza inquietante se dá em relação ao que é, ao mesmo tempo, familiar e estranho. Unheimliche é como que um “in-familiar”, algo muito conhecido que apresenta uma qualidade estranha, algo muito estranho que provoca uma impressão de familiar. Freud cita Schelling, um importante filósofo alemão do século 19, que afirmou que o “unheimliche seria tudo o que deveria permanecer secreto, oculto, mas apareceu”.

A noção de estranheza inquietante é estética, mas pode lançar luz sobre a questão política.

Tanto a literatura, quanto o cinema, menos conhecido de Freud, operam nesse campo. Mas podemos também pensar no cotidiano: naquele rosto — que é o nosso próprio — quando aparece no espelho à noite na hora de ir à cozinha buscar um copo d’água. A inquietação não é terror, é estranheza sobre o que já se conhece.

Nossa época parece marcada por esse tipo de experiência em que o familiar se torna estranho e o estranho é familiar. Vivemos como se estivéssemos em um pêndulo que não nos permite discernir bem o que está acontecendo. Se tomamos um exemplo político, temos o antológico aperto de mãos entre Lula e Maluf em 2012 dando-nos a sensação do unheimliche.

Ali algo tão estranho quanto familiar apareceu, algo que deveria ficar oculto veio à tona. No âmbito do senso comum e também no campo dos intelectuais, voltou-se a falar de “direita” e “esquerda”, dois domínios que se tem por opostos. No entanto, alguma coisa da relação entre direita (Maluf) e esquerda (Lula) veio à tona. Alguma coisa que deveria ter ficado oculta, algo que estava recalcado, apareceu. A estranheza experimentada refere-se ao vão aberto entre a vida subjetiva, as fantasias e crenças pessoais, e a realidade que, infelizmente, em algum momento apresenta a sua prova.

Por outro lado, muitos experimentam a estranheza inquietante atualmente em um sentido social mais primitivo, digamos que pré-político. Há quem ainda estranhe as manifestações de rua que acontecem desde o ano passado. Nelas são os pobres, os repudiados, os negros, os sem-teto, os sem-direitos em geral, todos os que foram socialmente recalcados e ocultados que de repente vieram à luz. O escancaramento da objetividade do estado social é inquietante para quem vive no narcisismo pré-político que evolui para a mentalidade autoritária. Cabe descobrir que o “desengano” sempre é positivo quando se trata de encarar a realidade da democracia.


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