Em sua “Ode triunfal”, Álvaro de Campos, heterônimo modernista de Fernando Pessoa, faz um elogio maravilhado da “beleza disto totalmente desconhecida dos antigos”. No clima de êxtase com o progresso, o poeta se referia à beleza das máquinas: “motores”, “guindastes”, “luzes elétricas”, “correias de transmissão”, “rodas dentadas”, “chumaceiras”, “engenhos”, “calor mecânico”, “electricidade”. Antecipando em seu êxtase os prazeres da interação do seu próprio corpo com esse universo, o poeta expressava a beleza dos “maquinismos em fúria” por meio de nexos entre a terminologia própria do mundo das máquinas e termos corporais e sexuais.
A “Ode triunfal” fez sentido em um tempo analógico em que as máquinas e o corpo humano viviam em tensão. O corpo ainda estava presente nesse erotomaquinismo ou tecnoerotismo, mas foi descartado em nossa época virtual-digital. Em seu lugar, o plástico surgiu como nova materialidade capaz de substituí-lo. Materialidade artificial que se torna universal no tempo e no espaço, o plástico é, em um sentido ontológico, a substância de nossa época. Se um dia o homem-máquina, hoje o homem-plástico.
A desproporção ontológica com as máquinas perdeu-se de vista, porque nossos corpos tornaram-se íntimos do plástico. Mimetizam-no. Fora de nós há o plástico na forma das coisas, do mesmo modo que dentro de nós, na forma de cirurgias, implantes, próteses. Nossa carne é moldada nas academias como se fosse de plástico. Nossa pele deve ser lisa como ele. Materialidade morta, o plástico usurpa o lugar da natureza perecível e promete o imperecível.
Nascido em laboratório, o plástico serve à produção de todos os aparatos de nossa época. Aparelhos como máquinas de fotografar, televisores, celulares, são feitos de materiais plásticos. Utensílios domésticos, roupas, carros, tudo está cheio de plásticos. O plástico não é apenas matéria, mas a nova arché, o fundamento e o princípio que reorganiza a condição da materialidade – as coisas que usamos, o mundo que nos cerca – na direção de uma contraditória vida artificial.
Nossas emoções, compreensões e ações modificam-se no confronto com o vasto universo da materialidade, cuja história está por ser escrita. Ela precisa incluir o plástico e sua pré-história.
Devir-silicone
De certo modo, todo o desejo é plástico, todo desejo é desejo de completude. Podemos falar de um desejo de plástico como desejo falso. Mas em nossa época conhecemos o desejo pelo plástico que nos completa artificialmente. Neste caso, não falamos do desejo enquanto busca de prótese como metáfora da completude inalcançável, mas literalmente como o que se tem à mão – um prazer imediato, nada tenso com a desproporção com as máquinas.
Perna mecânica, olho de vidro, peito de silicone têm estatuto semelhante ao da tela, da máquina de fotografar, do computador portátil, do aparelho celular. Próteses físicas, afetivas, cognitivas que nem sempre nos servem, mas às quais servimos. O corpo torna-se sobra ao seu redor numa curiosa inversão metafísica: de substância, no sentido aristotélico do termo, o corpo se tornou “acidente”. Rapidamente substituído no tempo do culto ao plástico, submetido ao gozo da completude de plástico, o corpo descobre que o “devir-silicone” é o destino.
Siliconados, plastificados, aparelhados, somos felizes portadores de próteses. O telefone celular, concentrado de tantos aparelhos, é a prótese de todas as próteses. Ao alcance das mãos do fetichista hipererotizado é o gozo certo: ele o porta, ele o exibe, ele o toca, ele goza. Falo universal, ele é o novo “dildo”. Plástico essencial que combina com a vida artificial.
*** Texto publicado na CULT 198, edição de fevereiro de 2015***